***Alerta Gatilho***
1. Se apresenta um pouco pra mim. Quem é você?
Eu sou alguém a quem os seus sonhos o preservaram do crime e da violência. Eu já pisei na bola, já queimei o filme, já chutei o balde, mas nunca chutei ninguém, nunca pisei ninguém e nunca queimei ninguém. Estou dizendo isto, porque, quando me conhecem, aos 52, sem carro, sem casa, sem dinheiro, sem emprego, sem trabalho, sem esposa, sem filhos, sem amigos, nunca me casei, nunca tive filhos, nunca namorei, então, quando me conhecem, e veem tudo isto, raramente procuram saber o que há, ninguém pergunta, julgam logo que há algo errado e, como de costume, pensam no pior, raramente me dão a chance de mostrar que um esquizofrênico não é um psicopata.
2. Você trabalha hoje? Se sim, com o que?
Emprego, trabalho e renda são coisas diferentes. Estou sem renda nenhuma. Estou trabalhando em quatro canções. Uma delas, 75% concluída, duas delas 50% concluídas e, a última, 25% concluída, que, apesar das pressões, eu não vendo, nem vendi e nunca venderei canções. Mas, é muito difícil compor sem poder tocar um instrumento musical ou cantar por aí. Aqui em casa é probido que eu toque instrumentos musicais, então eu costumava ensaiar em parques públicos, mas a Pandemia e um curso de Teatro me tiraram esse hábito. Só tive carteira assinada por três anos em toda a minha vida profissional e foi em planejamento e marketing turístico. Meu currículo não ajuda a conseguir nada, nem ajuda a conseguir emprego. Eu também tenho medo de conseguir um emprego e perpetuar esta situação de co-dependência que vivo em família e que já não aguento mais. Já consegui dinheiro como ator, como redator de política, como revisor de tese de mestrado, como auxiliar de pesquisa, como corretor de redação pré-vestibular. Eu sofro muito por não ter renda e por ter gente que acha, por você ser louco, que pode lhe forçar a um trabalho sem remuneração e sem reconhecimento, e que pode lhe fazer "pegar no tranco" para trabalhar, porque lhe julgam preguiçoso, ou coisa do tipo. É muito desagradável o trabalho forçado. Sou graduado em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, e não consegui concluir o curso de Arquitetura e Urbanismo também da USP. Observação: nunca mais quero trabalhar com publicidade, acho abjeto, me suscita ódio, não posso nem ouvir nem olhar.
3.a. Quem mora com você?
Eu moro com minha mãe e um dos meus irmãos.
3.b. Como é a relação com essa pessoa?
Com minha mãe, hoje, é uma relação tranquila, mas já foi muito difícil. Com este irmão é uma relação de violência doméstica, de ameaça à existência, de ameaça à integridade física, de ameaça de mutilação e, até, de ameaça de morte. Eu não devia falar dele, isso é assunto de polícia, não é assunto de imprensa. Uma situação de adoecimento psicossocial familiar completo. Minha mãe também é usuária do CAPS, como eu. Já ele está num delírio de onipotência a quem, ele supõe que, as doenças não atingem.
4. Como é um dia normal na sua rotina, o que você faz?
Mercado. Eu saio de casa, de manhã, com a mochila vazia para fazer o mercado, e volto, mais ou menos duas horas depois, com a mochila cheia e sacolas. Tento não sair às compras todos os dias, não tenho carro, logo 'vou de lá e pra cá' de ônibus, carregando tudo nas costas, tenho isenção de tarifa de ônibus municipal por causa da esquizofrenia, o que me quebra um galhão. Cozinhar. Depois disso, eu cozinho para todos na casa. Todos os dias, eu cozinho, mas, nem todos os dias, vou ao mercado, vou duas ou três vezes por semana. Às vezes, tenho depressão associada à esquizofrenia, mas tenho de sair assim mesmo. Livros. Gosto de ler, estou sem renda e sem emprego, então me sobra tempo, vou à biblioteca pública, que fica um pouco longe de casa, e retiro os livros, eu gostaria de ler mais, porém a depressão, acho que é pelo estado de ruínas da minha vida, me toma muito desse tempo e acabo lendo menos do que eu poderia. O prazer da jornada. Andrômeda. De vez em quando, olho as moças, me encanta a beleza delas, nem sempre dá pra evitar de olhá-las, mas eu sei que flerte no onibus é muito complicado. Elas costumam estar a caminho do trabalho, ou, fora dos ônibus, no próprio trabalho delas, então não estão acessíveis, mas o quase-nada dos sinais me alimenta, é tudo o que eu retenho, não flerto com quem não está acessível. Eu respeito. Eu não tenho ninguém, por isso, às vezes, flerto, se tivesse alguém, seria diferente, não flertava com ninguém. Acho bom dizer que abuso significa muita coisa ruim. Não as importuno, não as mexo, não as encaro, não as provoco, não as toco, a nenhuma delas, e não falo com nenhuma sem consentimento. Evito falar desta carência com qualquer pessoa, pois tem gente achando que, se você é louco, pode lhe forçar a ter um relacionamento contra a sua vontade, ou, é você que vai forçar alguém a ter um relacionamento contra a sua vontade, pois, se você é louco, podem lhe fazer "pegar no tranco", ou, é você quem vai querer fazer alguém "pegar no tranco". Como se fosse legítimo. É muito desagradável o casamento forçado. SUS. Vou buscar os remédios na UBS/CAPS para minha mãe e para mim, ela tem 79, eu também vou à UBS/CAPS marcar consultas, além de levá-la para as consultas com o psiquiatra, com o clínico, com os enfermeiros (medir a glicemia e a pressão arterial) e nos mais diversos exames dela. Eu também passo no psiquiatra, no clínico, no dentista, nos medicos e nos exames, mas, no CAPS, vou só ao psiquiatra e à farmácia mesmo. Perdi a confiança nos outros 'psis' de lá. O normal deveria ser a honestidade, a gente não deveria torcer para os outros serem honestos. Também compro remédios, que estão muito caros. Acompanho minha mãe ao CAPS e à UBS com motoristas de aplicativo. Pausa. Agressão ao perdedor que sou eu. Uma parte da rotina de casa é desviar do valentão, não falar com o valentão, não olhar pro valentão, calar quando o valentão consome quase todo o alimento que era para as três pessoas da casa, etc... Educação financeira. Administrar as contas, calcular os gastos do mês, pagar boletos, pagar aluguel, separar o dinheiro para comprar o necessário para cada um dos dias do mês, usar a Internet do celular para baixar boletos e comprovar o pagamento do aluguel. Acompanhar minha mãe ao banco. Os dias. Tem tudo isso na minha rotina, em todos os dias de cada mês, alguns dias, eu faço mais, alguns dias, eu faço menos, mas é muito raro um dia de total descanso. O peso. Na verdade, está tudo sobre mim, o dinheiro não é meu, e nem consigo dar conta de tudo. Aí, dá a depressão associada à esquizofrenia. Zerado. Não tenho um dinheiro só pra mim. Não quero doações, nem vaquinhas, nem nada semelhante, o que eu desejo é que parem de me plagiar e comecem a me pagar e a me reconhecer pelo quê foi eu que trabalhei para criar, ou seja, que respeitem meus direitos civis.
5. O que você mais gosta e o que menos gosta na sua rotina hoje?
Mais gosto, ler, mas, se eu pudesse cantar e tocar violão, uke, triângulo ou escaleta, para compor minhas canções, eu seria muito feliz. Menos gosto, a convivência forçada com o valentão. Conviver com minha mãe não é ruim, é bom, depois de muito tempo, é bom, mas há um relacionamento muito traumatizado aí. Um relacionamento que já foi muito difícil. Eu não estou aguentando a minha rotina. Minha mãe entra com o dinheiro e eu faço tudo, o valentão não entra com dinheiro nem faz nada, manda na casa com ameaças de agressão e agressão, e, além de tudo, minha mãe ainda quer que eu aceite tudo isso submisso ao valentão dourado dela. Tem também muita gente sabendo desta situação, que não apenas se omite, como também a explora.
6. Quando você teve contato com os primeiros sintomas da esquizofrenia?
1992, Outubro. Um surto severo de cujos os desdobramentos me forçaram a abandonar o curso de Arquitetura e Urbanismo em 1994. Passei 8 meses de '93 sozinho em depressão no CRUSP.
7. Quando foi diagnosticado?
Fui diagnosticado por volta de 1995, quando voltei à USP, por um serviço que a Universidade matém para os alunos e a comunidade. Um serviço excelente e gratuito.
8. Como foi esse processo de diagnóstico?
Foi tranquilo, ninguém, dos médicos e das médicas, fizeram algum 'terrorismo' dizendo que minha vida estava condenada, deixaram eu descobrir isto por mim mesmo, mas me deram apoio nesse processo árduo que é se saber com uma doença incurável e maldita, e continuaram a me atender até muito tempo depois de eu me desvincular da Universidade.
9. Como foi a reação das pessoas ao seu redor? Foi acolhido pela família e amigos?
Não houve nenhum acolhimento de familiares ou de amigos. Na família, é melhor não tocar no assunto. Sujeito a agressões. As ofensas preferidas da minha mãe são as associadas à loucura, como é comum. O valentão, ao me espancar, certa vez, me ameaçou dizendo que eu era louco e que ninguém iria acreditar em mim, caso eu o denunciasse. Meus amigos me arrancaram muitos bens simbólicos e artísticos (plágio) e alegaram que eram alucinações minhas todas as denúncias que fiz. Um deles até disse que eu não era ninguém e eu não poderia fazer nada. Ninguém acredita num esquizofrênico. O que impossibilitou que eu me inserisse na minha área de formação acadêmica. Meu diagnóstico virou álibi para todo tipo de agressão, desde os plágios, até calúnias e difamações. Não deu para manter amizades assim. (Nem no CAPS, eles não se despem dos preconceitos, há também muitos médicos preconceituosos em relação à esquizofrenia, logo eles que estudam tanto, né, como pode?). Não foram poucas as vezes em que eu preferi ficar em situação de rua para não voltar para casa. Teve gente também que saiu da minha vida quando viu a tragédia nela, mas, ao menos, não foram gente que nem entrou nela, na minha vida, para falar mal de fora daquilo que não tinha a menor ideia e nem sabia de nada para poder falar.
10. Você teve que adaptar algo na sua rotina por causa da doença?
Quando tenho crises, é bom ter algum lugar para se isolar, e sempre é necessário manter a vigilância sobre o tratamento e os medicamentos. Fora isso, sou só meio esquisito, por causa da expressão dos sintomas sobre o corpo. Muito comum que as pessoas interpretem essa esquisitice como algo demoníaco, como algo criminoso. Preferem pensar o pior. Não sou violento, os sintomas não são necessariamente violentos, quanto a colocar em perigo à si mesmo ou aos outros, eu coloco a mim mesmo em perigo não aos outros, foram automutilacões, tentativas de suicídio, acho que tomei a decisão de me suicidar, só não sei quando ainda. Ando abaixando a cabeça e seguindo em frente nas ruínas da minha vida, sem oportunidade e sob rapinagem. Está muito difícil.
11. Hoje ela te impede de fazer alguma coisa?
O estigma é pior do que a doença. O estigma impede, mais do que a doença, de fazer muitas coisas. Parece que o mundo lhe interdita sem que você tenha passado pelo processo jurídico da interdição psiquiátrica, e o mundo lhe cassa os direitos civis por conta, sem nada concreto, sem sentença e sem chance de defesa. Direitos autorais são direitos civis. Você se torna naturalmente suspeito. Ser suspeito passar a ser uma característica sua, graças ao estigma social da loucura. A sacralidade do homo-sacer. Como você leu nesta entrevista, eu faço um monte de coisas, mas não tenho reconhecimento de nenhuma delas, nem em casa, muito pelo contrário. Na rua, parece que eu não posso ser artista, tenho que entregar tudo o que tenho para os que se dizem "verdadeiros artistas", segundo uma régua que eles mesmos inventaram, onde, numa ponta, estão os verdadeiros artistas, os proprietários da lucidez, seres iluminados e demiurgos da realidade e, na outra ponta, onde eu estou, estão os loucos, os que não têm lucidez, que vivem na obscuridade, criminosos em potencial, que não têm e não podem ter sanidade. Óbvio. Essa regra diz que não posso ser artista, pois um louco é o oposto e o inimigo de um "Artista". Tem um site com canções mal-gravadas minhas mas que protegem a minha autoria:
http://qryz.net.
12. Você já conhecia a esquizofrenia antes do diagnóstico?
Sim, só desinformação, mas, sim, conhecia. O que eu sabia dela eram as trevas, a maldade, a escuridão, a destruição, a impossibilidade de pensar e de ser racional. A inimiga da sociedade. Aquela que deve ser silenciada nas suas palavras malignas de desordem e de aniquilamento. Os crimes, aos quais lhes eram atribuidos. Essa fantasmagoria toda. Mas, depois de fazer da Esquizofrenia minha velha amiga e ter o hábito de tomar um chá com ela por alguns anos, a gente percebe que ela não é um monstro, e que esse discurso associando-a à raiz de todo o mal, é uma construção dos perversos de verdade, aqueles só almejam uma coisa: calar as vítimas de suas violências, a violência por eles praticadas. Eu queria falar de coisas boas e trazer boas noticias, e, muitas vezes, me esforçando muito, até consigo, mas eu quero que as coisas boas tenham substrato numa realidade boa, e não sejam apenas palavras bonitas a nós adestradas e a nós incutidas, pelos outros, para melhorar os números da Saúde e a imagem dos loucos perante à opinião pública, sem compromisso algum com os próprios loucos, com a inserção saudável deles na sociedade, e sem compromisso algum com as suas realidades e com as suas limitações, que é viver seus sintomas, na medida do possível, bem. O compromisso deveria ser com os loucos, com eles mesmos, não um compromisso com terceiros, ou com seja lá quem for. Nesse discurso todo, não vejo ninguém sendo humanizado. Dignidade da pessoa humana. Só vejo simulacros, pois inexistem tratamentos pré-concebidos que ajudem todos os psiquiatrizados do mesmo jeito, ao contrário de tudo o que andam dizendo em todo lugar. Doença mental também não se reduz à desobediência pura e simples à regras abstratas. Um tratamento pré-concebido é um manicômio portátil, uma camisa-de-força invisível. Nestes casos, das doenças mentais, cada caso é um caso. Agradeço a leitura.
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