domingo, 5 de abril de 2015

Um Tempo de Julio Caesar.

Era uma manhã de sábado, e o areal estava vazio, todas as crianças do Conjunto Parque Julio Caesar gostavam de brincar lá na areia, inventavam-se muitas brincadeiras na maciez maleável e esculpível da areia branca, sim, naquela época "condomínio" era apenas a taxa mensal, os conjuntos de residências eram chamados de conjuntos mesmo.

As crianças, e eu com elas, gostávamos de fazer pistas lisas na areias, e, aproveitando a declividade do terreno, para as nossas venenosas corridas de pilhas furiosas e velozes. Todas colhidas do areal também. Pilhas, nada, eram venenosos, furiosos e envenenados dragsters.

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Eu tinha uns 6 anos de idade, e ainda não conhecia a dor de uma cicatriz de vidro. Andava lá aonde faz junção da alameda Paradiso com a alameda Florência. Bem atrás da unidade em que eu morava. E, da qual, não lembro o nome. Hoje está tudo murado, antes não era assim.

O traçado das ruas do Conjunto Parque Julio Caesar tem um formato oval de muitos prédios palitares estreitíssimos de pequenos pra se morar, e com muitos andares, e por isso muito altos, pois finos e compridos parecem bem mais altos do que, na real, o são, altíssimos. Seus prédios coloridos de pastilhas quadradinhas e pequenas todas da mesma cor, Cada uma das várias unidades com sua única e própria cor. Poderiam ser chamados de "prédio amarelo", "torre vermelha", "vestido de azul", "esperança verde", "laranja madura",.. etc. Mas não é assim que a coisas são. E, na época, eram as únicas edificações na área, o resto era mato.

Daí minha fascinação com lápis coloridos. E Hering Haste. Poder reproduzir um lugar de se morar. Por falar em cores. Um dia, vi o arco-íris nascer no mato e fui atrás dele, mas os arco-iris são seres ariscos que fogem da gente quando tentamos nos aproximar deles. Por esse motivo, acho aquela história de pote-de-outro, uma balela....

http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=491464

Me disseram que a irmã do Glauber Rocha caiu num fosso de elevadores de um dos seus prédios e veio a falecer.

Senti uma agulhada enorme no pé direito. Haviam cacos de garrafa verde nas bordas do areal. E doeu. Muito. E eu não vi. Pegadas de sangue e areia.

Minha primeira sutura. Meu primeiro corte. Minha primeira atadura. Que garantiu minha claudicância menina. Era o começo da saudade, estávamos de mudança. O areal estava de mudança. Os conjuntos viravam condomínios. A ditadura ia pro brejo junto com a economia. Enfim, assim é a vida.

Em 2005, não sei bem o mês, depois de minha defenestração feroz de um antro de corrupção na Bahia, descrito tão incansavelmente desde o começo deste blogue. Xá pra lá isso... Passei por lá, ontem mesmo, visitei o local com o Google Maps, estive virtualmente em Salvador da Bahia. mas não dava para ver as flores, devido às arvores, mas é possível se ver seus os vestígios, os visgos, os restos, os rastros, a arqueologia do areal.

E o lugar que havia me maltratado com aquela dor lancinante, naquele mesmo lugar aonde pisei no vidro, haviam uma flor amarela, que hoje sei ser venenosa (graças a web!), mas o lugar me disse que fez aquilo por amor ao me oferecer flores após a dor, como fazem nos enterros. Carinho, né?

Como diz a música. "Aê Aê Aê Ô Ô Ô, Salve, Salvador, me bate, me quebra, tudo por amor." (Prefixo de Verão). Aeeeê! é bem o que eu disse quando cortei o pé. E ooooô! bem o que eu disse quando me colocavam os pontos. Muito oooô mesmo, pois eu sempre fui um garoto chorão.

"Com caco de telha, com caco de vidro". Por muito tempo a frase "caco de vidro" foi uma palavra só. Trauma de infância. Caco de vidro verde pintado de vermelho na areia branca e fina.

Todo mundo deve saber que o vidro é feito de areia fina e peneirada derretida, fundida e moldada a sopros, ora, pois, era costume se soprar machucados para aliviar a dor, mas os médicos disseram: "melhor não, por causa das bactérias bucais!".

Estive lá em SSA outros verões também.

Ontem mesmo, eu nem sabia se era uma flor vagabunda (ou graxeira), tudo bem, Florência é uma região da Itália, como todas as alamedas do conjunto, eram, e são, regiões do país latino em que imperou Júlio Cezar. Então, a flor se chama Cambará, Camará, Chumbinho, e vive na caatinga também (Só assim pra suportar a aridez da vizinhança seca de um areal subterrâneo). Lantana Camara L. Ou seja, há parentesco etimológico entre uma câmera e um camarada. Note que cinema é uma arte que não se faz sozinho, são precisos os seus camaradas, e que não basta uma ideia na cabeça e uma câmera na mão, como dizia bem o Glauber, e que sabia muito bem disso. E venenoso era considerado tudo o que questionava a ordem estabelecida de 1977.

Viu que basta um esforcinho para a gente conseguir valorizar o que quer que seja?

 foto de Paulo Schwirkowski

Uma flor amarela nas alamedas do conjunto com meu medo da dor de uma cicatriz maior do que meu pé. Parece que as cicatrizes não crescem junto com nosso pé. Ainda bem. Senão, eu seria uma cicatriz, não um cara aí qualquer. Calcanhares aladas.

Um dia a areia branca foi removida, eu ainda estava lá, vieram tratores e nossa vontade foi de barrá-los nos amarrando com correntes na areia, como fazem, hoje, os ativistas, a vontade era tanta que nos aproximávamos muito das máquinas amarelas num gesto quase suicida que foi proibido pela autoridades condominiais, ou conjunturais, rapidamente. Então, andando pelo areal nas vésperas da proibição por perigo ou por repressão, pois eu era menino, mas não era subversivo, como chamavam àqueles que não pagavam pau pro "regime", me machuquei de um modo adulto, pois minas são usadas para que ninguém ande pelo terreno que parece livre.

"Um dia a areia branca, seus pés irão tocar, e ao se sentir em casa, sorrindo vai chorar." (Caetano Veloso). Era tocar a areia branca exatamente o que eu achava estar fazendo, SQN.

Hoje, só dói, quando eu piso, em uma pedra e a pedra acerta o alvo bem na cicatriz, mas aprendi com a idade a esconder minhas dores. E nunca mais tenho chorado, infelizmente.

Ôxe, esse minino cortou foi o pé!

The color shines for youhoo!

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