sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Alimento (Resenha).

Trabalhar por que faz sentido, não apenas de olho na conta bancária, e comer por que faz sentido, não apenas por que ingerimos.

O filósofo divide o mundo, proletariado e burguesia, visíveis e invisíveis, pobres e ricos, mas Josué de Castro divide o mundo “entre quem não come nem dorme por ter fome, e quem come e não dorme com medo dos que tem fome”. Não são as corporações, é um modo de pensar, a lógica do lucro. Um filósofo disse que o ato da alienação, aliena ambos, escravo e senhor. Concentra-se mais riqueza, mais medo, o medo que envenena todos, senhores e escravos, famintos e bem-alimentados.

Somos linguagem e carne. Nosso mundo é uma mistura. Mistura de ambiente, de fisiologia e de sociedade de consumo.

A carne é atravessável, o bebê se alimenta da mãe, tanto em nutrientes como aromas e sabores e pode ser difícil introduzir um novo alimento por que o neném tem muito medo dele.

A linguagem da comida, a cozinha e suas paredes, o calor do forno e do fogão, o modo de ser dos pais, seu desempenho social, sua competência e desenvoltura em grupo. As palavras, a musicalidade deles, o formato do quintal, a terra ou o mato. Em volta da comida. É ambiente de linguagem.

Uma mensagem de trinta segundos pode desencadear uma ruptura com a dinâmica familiar e a criança entra em comportamento suicida. Ninguém anuncia frutas e verduras. Se fosse bom, não precisava de anúncios.

São dois personagens John e João.

Self service fast food franchising on demand just in time.

John e a sociedade de consumo, é individualista ao extremo. Mora com a família, não se interessa por ninguém, come só e assistindo televisão. Cada um tem sua televisão. Pouco sabem um do outro. É conveniente ter acesso fácil a comida pronta e é sinal de poder aquisitivo. O convívio de John se dá entre seus colegas de trabalho e de faculdade. Depois se forma, muda de emprego e não vê mais nenhum, troca de grupo e de casa como quem troca de roupa, e para um poder aquisitivo maior. Troca seis por meia-dúzia. Ele se preocupa com a saúde, outro dia leu uma matéria na internet sobre dieta paleolítica, e como deseja ser atlético para atrair as mulheres, aderiu. John tem fixação por nutrientes, conhece alguns e evita outros sem saber bem o porquê. A mãe de John tira o lixo, ele detesta fazer coisas de mulher. Ele cozinha muito mal, mas e daí? é coisa de mulher. John não sabe dialogar, ele pratica monólogos em duplas. Come toda a proteína da família, é atleta. Não sabe que perceber o outro também atrai as mulheres. Pobre John, de vez em quando, se gaba de comer comida étnica, mas não sabe se há fidelidade ao paladar, provavelmente não. A família se desestruturou completamente, e a mesa sente o baque. A comida virou alimento. Não há mais conversa, não há mais troca de gentilezas. John virou elite disfuncional e controla aparência do próprio corpo e do corpo do outro obsessivamente. Tem tanto produto no mercado e tão pouco interesse que ele tem em saber o que está nos rótulos, mas nota as cores. John é branco. Só um tratamento de choque de um profissional com habilidade, atitude comprometida, motivação e desempenho numa ação pedagógica para disciplinar essas fomes ocultas. Fome de humanidade e de humildade.

João é preto. Mora na fronteira do urbano com o rural. Ele estudou na faculdade e aprendeu algo sobre si, mais do que sobre o mercado. Não se importa com status social, tem facilidade de se relacionar, faz uns bicos para sobreviver como assistente de cozinha. Corta vegetais e lava pratos. Aprendeu a cozinhar com a vó, e  nem liga para a comida como status social, ou prefere desligar. Conhece uns sambas cantados enquanto cozinham a fatada colorida. Acha engraçadas essas comidas cheias de ar e sal que são vendidas nos grandes supermercados. Aonde ele mora, ainda se compra na venda. Outro dia, ele é conectado, não duvide, leu que os ratos alimentados com fast food não comem mais outra coisa. Ratos mal-acostumados esses. Comida feita mais para agradar do que para alimentar. Inventaram a bajulação gustativa. O gosto de João é adulto já. A comida é conviver, estruturar, socializar, comunicar, usar, situar e conduzir. João adora o clima das fatadas em família.

A alimentação é um direito social. Alimentação é cultura, é sentar à mesa e trocar afetos, ideias e conhecimento, faz parte desse convívio pôr a mesa, arrumar a cozinha, uma toalha bonita para cobrir, frutas, fogão a gás na cidade, e fogão a lenha no campo. Toda uma experiência bela e instrutiva de aprender com os mais velhos e se divertir com as crianças.

A monocultura de exportação, seus transgênicos e venenos exportados todos para pecuária estrangeira, alimento que poderia alimentar dez, alimenta um. Sem falar que esse tipo de cultura global depreda a comida de um país. E acabar com a comida de um país é acabar com o país. Comida é aprender a cozinhar com a vó, alimento é saber que o suco de laranja tem vitamina C. Comida é um envolvimento de quem cozinha com quem come. Alimento é reduzir o sal ou o açúcar para notar melhor o sabor do ingrediente.

Uma palavra interessante para a relação com a comida: comensal é participar de alimentação coletiva. Comida é mais do que alimento, é mais do que ingerir nutrientes, é mais do que buscar submisso uma aceitação social. Comprar comida, comer junto, limpar a cozinha, lavar a louça são eventos, são prazeres. Saber de onde veio o alimento e para onde ele vai também são. Dar valor ao abrigo, à água, ao alimento e ao amor. Infinitas potencialidades reduzidas pela mídia a uma fisiologia manca ou a uma cobiça atroz. Desperdiçar tempo não é desperdiçar alimento.

Monstros globalizados deglutindo sem atenção calorias excessivas da vida social e do meio-ambiente. Nossa comida simplória comparada ao poder da TV: produtos brilhantes, flexíveis, corados como atletas ultraprocessados, com aparência muito melhor na tela do que no prato, ou mesmo na bandeja de cada um. Uma outra população que não se alimenta, vive de arroz com farinha, mingau de farinha, pirão, ou, até mesmo, de garapa, água com açúcar, quando tem água. Famintos em frente a essa TV. O mundo é tão violento. O que a estatística não diz é a diferença entre escassez e fome. Sentir fome já foi sinal de saúde.

O nutricionista tem o dever e o compromisso social de não se calar perante o sofrimento. Mesas inteligentes olhando que todo esse trabalho é prazeroso. Dá sentido a vida, ao corpo e à alma, muito além dos corações e mentes. Uma frase edificante, quando alguém disser que é difícil, lembre-se que edifício é um prédio cheio de andares, e vá andando em frente com seus ideais. Ser nutricionista é cuidar da alimentação saudável, adequada e sustentável, ser porta-voz das necessidades alimentares da população junto ao poder público com ética e técnica.

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