“O térreo é dos meninos que moram lá". Disse, certa vez, esse jovem ancião, quando com muito gosto se referiu a uma obra já pronta. Os apelidados, Redondinhos, lá de Heliópolis. Destacando-se a interação entre a sociedade, sua população, com a sua cidade. Ruy Ohtake é arquiteto formado pela USP e filho de uma reconhecida artista plástica, Tomie Ohtake, da qual herdou a generosa intuição, e admite-o. É necessário olhar para as comunidades. Mas, o caráter simbólico é tão ou mais importante do que o caráter material. Estética é para qualquer um e para todo mundo. Tenha ou não dinheiro. Tenha ou não residência, Tenha ou não emprego. Assim, matéria e símbolo coabitam em sua obra.
Verdade que vai muito além da obra. Ruy Ohtake fez questão de entrar em contato com as pessoas para quem iria construir uma obra pública de moradia. Como disse, em situação de dupla responsabilidade. E tudo começou com um equívoco de uma revista que tomou a parte pelo todo, quando o arquiteto disse que a coisa mais feia em São Paulo era a desigualdade entre Morumbi e Heliópolis... Não apenas Heliópolis!
Não é suficiente que o projeto esteja detalhado. É imperativo o contato com a comunidade. E ainda hoje é possível encontrar o arquiteto em Heliópolis acompanhando a vida que seu projeto abriga. Obras sofisticadas são relevantes. Mas, a síntese de obras socialmente importantes nunca deve ser relegada a segundo plano.
Símbolo e matéria, em breve vamos a essa simbiose. O ser humano é habitante por natureza. Pode-se dizer que a placenta foi seu primeiro habitat. Aonde adentrou a esfera de existência em indelével convivência. Nunca fomos, nenhum de nós, um só, um único. Já surgimos em dois, e em muitos permanecemos mundo afora. A arquitetura manifesta arte em criar espaços de brincar, de trabalhar, de conviver, de se proteger e de sobreviver. Pode ser difícil, a cidade, pode ser acolhedora, mas a convivência entre as pessoas cria a cidade seja lá como ela for. A qualidade da proteção que uma cidade dá aos cidadãos é proporcional ao cuidado de imunização mútua entre todos nós que damos uns aos outros. Os prédios estão em segundo plano. O ser humano habita de diversas maneiras, mas o importante é o espaço habitável. Tensão de um acorde musical para criar um clima, uma estética, uma possível liberdade. Suas esferas protetoras, aonde se recomporão, se reabilitarão, se prepararão para voltar ao lado de fora, aonde as atividades são vitais, comunicação de símbolos, amor, palavras, roupas, desenhos, pinturas, acervos, modelos, esquemas e de matéria, comida, roupas, dinheiro, pinturas, acervos, tijolos, fontes, água e esgoto.
A palavra “política” vem de pólis, palavra grega para cidade. Ou seja, ao contrário do nosso sinistro tempo, política significa convivência entre cidadãos. Claro, o estatuto do cidadão grego à época não se compara ao estatuto do cidadão de hoje. Mas, convivência é convivência, não guerra, e para conviver é preciso se preparar. Daí a necessidade de materializar em um símbolo esse projeto, Brasil 2022, numa logomarca. Projetada de maneira inesperada por Ruy Ohtake. O homem é um animal político diz uma metáfora consagrada e, talvez, ultrapassada. Inteligência é saber viver em comunidade também. O sentido da comunidade.
“Estética pode ser em qualquer lugar”. O magnetismo de um lugar pode propiciar uma vida melhor ao seu morador. Quando uma casa comunica algo a alguém ela é uma casa mais viva, e todo mundo quer ficar um pouquinho mais vivo. Por isto espalhamos cores por aí, em todas as ruas, de todas as praças. Estética pode surgir das situações mais simples, um aperto de mão, um aceno, um magnetismo de comunicação e prazer. Um gesto de imunização e de comunicação ancestral que carregamos conosco em nossa casa.
O arquiteto assume que passou a lutar por uma cidade mais igualitária. E a logomarca traz consigo a intenção de atenuação das desigualdades observada pelo arquiteto.
A cor é importantíssima para ele, essa coisa simples, de uma demão de tinta, é uma caráter importantíssimo da obra do arquiteto, a primeira comunicação da pessoa e de sua casa ao visitante inesperado ou desconhecido. Convivência, visão pra fora, luz que entra para a pessoa e para a cor na pessoa, cor simbolizando alegria, cor é uma coisa muito brasileira, frutas, comida, tecidos, carnaval, festas, expressão, cor é alegria, cor é mensagem, na logomarca cor é reestruturar o futuro, complementando o passado diante da tradição e da criação de um futuro, cor é uma coisa muito brasileira, cores fortes...cor com compromisso de cor e de coração, cores fortes... Emoções. Calor humano.
A logomarca Brasil 2022 tem uma complementar entre duas condições de cores, laranja e verde são complementares, e passado e futuro também o são. Ela é menos uma casa e é mais uma ágora, menos o lugar do pensador privado, aquele também privado de comunicação simbólica, e mais o espaço do pensador público, aquele capaz de integrar em si até os maiores horrores da humanidade, embora, nem sempre, seja necessário ir a tanto. E, embora, seja necessária a casa.
Vemos o traçado dos jovens crescendo em inteligência em meio a uns devaneios tolos como trajetos de insetos procurando e procurando, mas sempre indo e indo. Temos nela o compromisso de quem chegou antes no balizamento da vida, não no seu controle. Deixa o menino brincar. Mas, em dupla responsabilidade com uma mudança de rumo, pois o devir histórico é sempre mudança de rumo, para a esquerda ou para a direita, para cima ou para baixo, para frente ou para trás, para dentro ou para fora. Sempre para o inesperado de estar lançado ao mundo. Crianças gostam de insetos e de dinossauros.
Os rabiscos que sustentam os dois traços e abrem para o observador a cegueira do presente sempre em projeto, que pode ser documentado, mas perde sua validade na documentação. Um projeto de ir junto. Em comunidade. Na convivência entre as pessoas. Em responsabilidade mútua e compromissada. Surge a questão de quem cuida de quem na verdade. Por isso, toda a arrogância e a presunção se invalidam por si mesmas. Quem cuida de quem? A logomarca não diz, mas nenhuma obra de artes plásticas tem necessariamente de dizer algo, é para ser vista apenas. Colocar tudo dela em um texto é de uma presunção sem limites. Mas, pode ocasionar algumas luzes. Alguma comunicação. Rabiscos de liberdade emoldurados por dois traços, um deles é o plano já feito e outro traço é o plano por se fazer. Imanência, o cotidiano, o dia a dia, nossa esfera principal, e o conceito, o esquema, o sistema, a ideia que nos motiva a ir em frente cegos tal e qual outro como nós.
A escultura aonde o caos sustenta o passado e o futuro. Claro que podemos escolher evitar o caos! Mas, pelo conceito que leva à transcendência. Sim, podemos escolher apenas entre o caos e a transcendência, são conceitos mutuamente excludentes. Sermos espectadores passivos que gostam de olhar o jogo. Ou, podemos jogá-lo também com as ferramentas que temos.
Um pouco menos de estrutura e um pouco mais de história. Em 2022, o Brasil faz 200 anos de fim da submissão material à metrópole, se desfaz o laço legal da forma jurídica nos ligava a Portugal. Em 2022, nosso país rompe os laços de imitação pura e simples dos símbolos estrangeiros que nos ligavam aos países mais, digamos assim, desenvolvidos que nós, e iniciamos a busca de um caminho próprio, são 100 anos de Semana de arte Moderna de 22. Assim, na posse do símbolo e da matéria, sobra inteligência para construir um futuro em comum. Estamos contando história por que a logomarca se recusou a contá-la e alguém tinha que fazer isso.
Estilo é um pouco de uma época, o estilo são formas artísticas comuns a um tempo específico em um espaço determinado. A logomarca é um elemento de negação do estilo, vive entre a abstração e a concretude de dizer apenas como e onde estamos. A atividade do arquiteto está entre a filosofia e a biologia. Esta logomarca transgride a forma de tal maneira que se vê uma arte propositiva de uma tensão, a tensão necessária à vida, à criação e ao conceito, tarefa que precisamos realizar para escapar do caos, aos pulos por cima do plano da imanência, pela transcendência que nos permite ver todo o cenário, para finalmente estabelecermos nossos papéis, assim que pousarmos. Casa é também para isto.
O bom marceneiro é amigo da madeira. Assim disse o filósofo, para o qual, amiga e amante é a filosofia. A logomarca é amiga sabedoria quando propõe uma forma de olhar o mundo. Somos irremediavelmente livres e rivais. Aceitar essa realidade é aceitar a Pólis e a política necessária para conviver em cidades. Discutir não é se digladiar. Bater à espada é outra época histórica cada vez mais próxima. Descobrir o outro é mais que necessário à convivência, no lugar de negá-lo, ir de encontro a ele, para uma surpresa, tanto um abraço como uma agressão. Não sabemos, esta é a tensão do outro. Somos sempre outros de nós mesmos.
O pensamento é simétrico, mas a realidade é assimétrica. A escolha feliz de uma “assimetria simétrica”, por ser uma simetria longitudinal, causa um espanto e dá uma esperança para vivermos, um dia, um tempo melhor. Mas, quando vivermos um tempo melhor, conforme o esperado, a logomarca poderia ir a um museu para testemunhar a virada de que precisávamos, mas não víamos. Filosofia. Símbolo.
A arte não é um crânio, ela é uma carne preenchida por uma ossatura, e a casa é o cosmos aonde nos recompomos para novas jornadas pela vida. As cartilagens estão lá, estamos em movimento, precisamos descobrir como estas forças e cartilagens se comportam para finalmente aprendermos a andar. Equilíbrio e pé-no-chão. Biologia. Matéria.
Os dois traços definem um plano de imanência, ou melhor, são definidos por ele, os rabiscos são conceitos, preceitos e afetos que estamos apalpando e apalpando para encontrá-los de tanto ir de encontro a eles. Pois, o horizonte também se movimenta junto com nossos passos. O horizonte é nossa utopia. O plano está sendo dobrado e costurado em um tear de retalhos por uma agulha magnetizada, de uma bússola, incessantemente a costurar e costurar. Os rabiscos são os traçados da agulha, e os traços são as lançadeiras que corrigem o rumo do retalho enquanto passa a fazenda. Um bordado mui generoso. O pensamento é aquilo sobre o qual a direção da agulha se volta. Como a agulha da bússola que vai e volta sobre a agulha da máquina-de-costura.
Escurecendo um pouco: Os traços são diagramáticos do movimento infinito das balizas, têm direções absolutas de natureza fractal do plano esfolhado e esburacado. Os conceitos são os rabiscos intensivos em superfícies e em volumes sempre fragmentários. Disse o filósofo. A logomarca é riacho de cujas as margens são o campo transcendental, quase caos, o antes e o depois. E a gente no meio se banhando alegremente com nossas duas asas-nadadeiras. O caos não é disforme, ele se caotiza, se faz outremforme, modifica todo o cenário, não o acinzenta. Só mergulhando no caos que os possíveis da transcendência surgem. Pois a imanência é perigosa demais, e precisamos driblá-la como meninos jogando bola-esfera. O caos contém tudo. A ordem é criação nossa, quando atribuímos um sentido para existir. Assim, combinamos o movimento dos rabiscos com a potência do horizonte absoluto dos dois sólidos-traços. A história é coexistência transcendências não é sucessão de imanências. Minha transcendência não anula, obrigatoriamente, a de ninguém, nem mesmo a sua, caro leitor. Meus saltos não obrigam que eu lhe amarre seus pés, pelo contrário, leitor, saltos em grupo são mais ornamentais. Chega!
O convívio é uma ocupação da arte do arquiteto, o convívio entre pessoas e o convívio entre ousadia e inovação. Se as palavras são “ousadia e inovação”, a Brasil 2022 exibe uma bela tensegridade, palavra difícil para o fato de que na física não existe pressão, isso mesmo, deixa de lado essa concepção antiquada de que trabalhar é aguentar pressão, no lugar da pressão temos uma coexistência ativa de forças de compressão e de tração. Isto é tensegridade. Uma bolha de sabão. A história se move em ziguezague como os vetores tensegrantes. Como as serpentes. Nela, se veem os traços espessos, mas curtos que seriam os limites, os devires, aquilo que não temos como ultrapassar, um conjunto de valores morais, tecnológicos, técnicos, jurídicos, políticos, sociais, estéticos, culturais, etc... que não podem ser ultrapassados como muralhas protetoras, e os rabiscos, nossa área de ação aonde desenvolvemos os possíveis de nossa criatividade e nosso sentido.
A logomarca informa a liberdade que sonhamos. Precisamos aprender a nos imunizarmos uns aos outros para fins de chegarmos ao futuro com uma sociedade mais igualitária e menos desigual. Nos imunizarmos dos venenos deste tempo sinistro em que estamos presentes, e assim nos destacarmos desta parede simbólica e material na qual estamos presos para fazer dela nosso habitat natural. A ausência de tensões é um privilégio emburrecedor e embrutecido. Pelo contrário, não queremos espaços de mimo, queremos os desafios.
Então, a marca artística é referência nos dois traços, e é conceito nos seus rabiscos, visando dizer à história: Estaremos aqui, no Brasil, em 2022. Celebração da vida.
Para finalizar, as próprias palavras do arquiteto, Ruy Ohtake: “A mancha verde propositadamente rabisco, porque em meio aos rabiscos, que vamos ter de construir nossos caminhos pelo Brasil e, algumas diretrizes, são os dois traços.”
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